A música no Processo
La música en el proceso
de formação da
identidade afrorreligiosa
em uma cidade
da Amazônia*
de formación de la
identidad afrorreligiosa
en una ciudad de la
Amazonia
Reginaldo Conceição da Silva**
Universidade do Estado do Amazonas, Brasil
DOI: http://dx.doi.org/cl.23.2016.5
Recibido: 17 de julio de 2015 * Aprobado: 1 de octubre de 2015
cuadeRnos de liteRatuR a del c aRibe e Hi sPanoaméR ica • i ssn 1794-8 290 • no. 23 • eneRo -Junio 2016 • 83 - 115
* Texto produzido a partir da dissertação de mestrado, “Na gira Umbanda”: Exercício etnográco sobre expres-
sões de afrorreligiosidade na “fronteira” e no Terreiro da Cabocla Jurema em Tabatinga, Amazonas. Sobretudo
o capitulo três que com titulo original de “Exercício Etnográco de um ritual da umbanda na construção da
identidade dos povos de comunidades tradicionais – terreiro”.
** Professor Assistente da Universidade do Estado do Amazonas. Correo electrónico: reginho.obi@hotmail.com
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Resumo
A música dentro dos Cultos aos Orixás
e Encantados sempre foi um veículo de
comunicação entre os mundos físico e
espiritual. O objetivo é apresentar A mú-
sica no Processo de formação da iden-
tidade afrorreligiosa em uma cidade da
Amazônia. O método de estudo foi o Fe-
nomenológico e o Etnográfico. Realiza-
do no Terreiro de Umbanda da Cabocla
Jurema. Os dados da pesquisa foram
tratados de forma qualitativa e apresen-
tados de forma descritiva. Os resultados
nos levam a acreditar que os processos
de iniciação e desenvolvimento espiri-
tual dos filhos de santo são acionados
pela musicalidade.
Palavras-chave
Música afrorreligiosa, Formação da
Identidade, Umbanda, Amazônia.
Resumen
La música dentro de los Cultos a Ori-
shas y a Encantados siempre ha sido
un vehículo de comunicación entre los
mundos físico y espiritual. El objetivo de
este ensayo es dar a conocer la música
en el proceso de formación de la iden-
tidad afrorreligiosa en una ciudad de la
Amazonia. El método de estudio fue el
fenomenológico y etnográfico. Realizado
en el Terreiro de Umbanda Caboclo Ju-
rema. Los datos de la encuesta fueron
tratados de manera cualitativa y presen-
tados de forma descriptiva. Los resulta-
dos nos llevan a creer que los procesos
de iniciación y el desarrollo espiritual de
los fieles son provocados por la musica-
lidad.
Palabras clave
Música afrorreligiosa, Formación de la
identidad, Umbanda, Amazonia.
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Introdução
A festa gera a concretização e efetivamente sensorial de uma
determinada identidade que é dada pelo compartilhamento do
símbolo que é comemorado e que, portanto, se inscreve na me-
mória coletiva como um afeto coletivo, com a junção das expec-
tativas individuais, como um ponto em comum que define a uni-
dade dos participantes. (Araújo e Haesbaert, 2007, p. 73)
A descrição e análise deste ensaio teve como base o olhar sob uma Gira de Um-
banda em uma comunidade religiosa - o terreiro da Mãe Lúcia, então com uso
compartilhado como o Pai Jairo - seu processo de construção da identidade de
“povo de comunidade tradicional de terreiro” que, acionada pela comemoração
litúrgica e por meio deste a festa como ritual de iniciação e permanência na Um-
banda.
A realização do exercício etnográco, abordando esta temática, propicia um olhar
diferenciado, dentro das especicidades ritualísticas acompanhadas. Embora a
abordagem seja em momentos festivos, a apresentação do estudo faz alusão ao
olhar externo, se observado, sob vários ângulos, o modo de vida de quem faz da
Umbanda um processo de autoconstrução identitária, incluímos ai as diversas
expressões musicais.
A escolha por estudar os afrorreligioso da Umbanda em momento das “Giras”
1
,
me faz reportar a Michael Meslin (2014) que arma:
A insistência no papel do sujeito individual na experiência reli-
giosa, por mais justificada que seja não pode dispensar-nos de
procurar compreender o sentido das ações coletivas pelas quais
o homem tenta experimentar o divino entrando em relação com
ele. (p.153)
Desse modo, compreender as estruturas pormenorizadas que cercam a dicotomia
tempo-espaço, nos conduzem a tentar uma observação em profundidade e em
momentos de festividade. A festividade é para Cox (1974), citada por Castro
(2012) como sendo:
1 Alusão ao movimento circular que é realizado em sentido anti-horário, durante as danças rituais, no interior dos
terreiros.
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Um período de tempo reservado para a expressão plena do
sentimento. Consiste dum irredutível elemento de prodigalidade,
dum viver intensamente. [...]. Sendo a festividade uma coisa que
se faz por sua própria causa, propicia-nos breves férias das ta-
refas diárias, e uma alternância sem a qual seria insuportável a
vida. (p.41)
O método adotado para a realização da pesquisa, como apontado anteriormente,
foi o etnográco. A observação foi realizada nas Giras de Caboclo, ocorridas ao
longo dos anos de 2014 e 2015. Os registros, além das descrições, foram feitos
com a gravação de vídeo, registro fotográco e conversas informais com Filhos
de Santo, previamente autorizados pelo sacerdote, Pai Jairo e pela sacerdotisa
Mãe Lúcia e demais membros do Terreiro.
Para este artigo, o recorte temporal se fez dado o nascimento de dois caboclos,
momento que este diferencial possibilitou a ampliação do “olhar” para a impor-
tância da música em momentos de intensa alegria para a comunidade e, sobre-
tudo, para o el. Opto, neste caso, em descrever o ritual observado, mantendo
assim a essência das experiências vividas.
No dia 28 de março de 2015, por volta das dezoito horas, recebo a seguinte men-
sagem por celular: “Hoje tem Gira para Caboclo na Mãe Lúcia, 18h30min. Não
falte”. De pronto, checo meus equipamentos de campo e me desloco para o Ter-
reiro. Cheguei sob uma na chuva, de imediato cumprimento alguns Filhos de
Santo que se encontrava na rua. Não escutei o som do tambor, mas olhando para
dentro do terreiro, outros Filhos de Santos, já arrumados, aguardavam o início da
cerimônia festiva.
O Pai Jairo inicia da cerimônia, após dez minutos de espera. Toca uma pequena
sineta de bronze, cujo som no, convidava quem estava longe. Aos poucos uma
rápida agitação dos Filhos de Santo para terminar de se vestirem dentro da casa
de Mãe Lúcia. Outros, porém se posicionaram, em la na frente da porta do Ter-
reiro. Por meio de uma rápida contagem, cerca de 40 pessoas entre dançantes da
Gira e visitantes, estavam presentes naquela noite.
Os Filhos de Santo se posicionam em três leiras contendo sete pessoas em cada
uma. Mãe Lúcia já se encontra sentada numa poltrona, descalça e a espera da
entrada dos médiuns. A maioria desses vestidos com roupas brancas ou claras.
Colares, também chamados de guias no pescoço, completavam as indumentárias
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que fazem a ligação entre o mundo cosmológico e o físico. As cores e quantidades
diferenciavam a idade iniciática dos dançantes e sua relação com as entidades.
Pai Jairo inicia a cerimônia festiva convidando a todos a rezar o Pai Nosso e a
Ave Maria, que é seguida em coro pelos médiuns e visitantes. Vê-se que todos
abaixam a cabeça, enquanto estendem as mãos para o alto. A estrutura litúrgica
católica faz abrir a expressividade da integração de credos, mesmo que aparente-
mente limitada, mas que faz os praticantes da Umbanda deixe o “mundo profa-
no” e adentrem ao “mundo sagrado”.
Desse modo armo que as orações entoadas, constituem a “fronteira” simbólica
de “mundos” religiosos, ao mesmo tempo em que prepara os corpos dos médiuns
para distintos níveis de energia espiritual. A “consciência religiosa”, do ponto
de vista transcendental, se faz presente, no processo de formação da identidade
afrorreligiosa da qual os participantes na aliança de credos mantida na Umbanda.
Desse modo, é inexistente a negativa da superioridade dos credos na formação do
Umbandista. Os emblemas da cosmovisão católica como imagens, cruz, terço e,
sobretudo, as orações, ocupam posicionamentos de destaque na liturgia da Um-
banda, seja na sua abertura, seja durante curas ou ainda nas cantigas destinadas
aos Orixás e Encantados.
A conjuntura sincrética alimenta a formação da identidade afrorreligiosa pela
prática e esta se faz em momentos de Gira, faz da permissibilidade aliada da re-
dução das resistências mais acirradas que o jovem possa vir a ter no instante da
sua entrada no culto.
Cânticos em louvor aos Orixás
Toca-se a sineta pelo sacerdote e inicia a primeira cantiga para Ogún, orixá da
guerra.
I
Ogún já venceu, já venceu, já venceu!
Ogún vem de Umbanda que na Umbanda é Deus.
Ogún já venceu, já venceu, já venceu!
Ele vem beirando o rio, ele vem beirando o mar.
Ele vem beirando o rio, ele vem beirando o mar.
Ogún já venceu, já venceu, já venceu!
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Ogún vem de Umbanda que na Umbanda é Deus.
Ogún já venceu, já venceu, já venceu!
Ogún vem de Umbanda que na Umbanda é Deus.
Ele vem beirando o rio, ele vem beirando o mar.
Ele vem beirando o rio, ele vem beirando o mar.
2
Ao término da cantiga todos aplaudem e alguns se abaixam e tocam no chão e
após isso põem as mãos na testa rapidamente como se estivessem se benzendo.
Em seguida começam a balançar seus corpos de um lado para o outro novamente
e aplaudindo cantam:
II
Ogún quem manda é Zambi
3
Ogún quem manda é Zambi.
Corre, corre toda gira pra salvar lhos de Umbanda.
Ele vai girar, ele vai girar, na linha de Umbanda ele vai girar!
Ele vai girar, ele vai girar, na linha de Umbanda ele vai girar!
A sequência oro-gestual são acionadas para compor a narrativa musical desti-
nada a Ogún, com o bater palmas e balanço do corpo, em distintos movimentos
circular.
III
Ogún já usou perneira, Ogún já usou boné!
Ogún já foi capitão, Ogún já foi coronel!
Ogún já usou perneira, Ogún já usou boné!
Ogún já foi capitão, Ogún já foi coronel!
Ogún já usou perneira, Ogún já usou boné!
Ogún já foi capitão, Ogún já foi coronel!
Ogún já usou perneira, Ogún já usou boné!
Ogún já foi capitão, Ogún já foi coronel!
2 Nota-se a diversidade de ambientes vinculados a passagem de Ogún. As representações do Rio e ou do Mar,
pode parecer distante para o leitor familiarizado com a cosmovisão de que o ambiente deste Orixá seja a estrada,
sobretudo a de ferro ou linha de trem. No cantar a Umbanda, eis mais uma variação e assimilação geográca que
os praticantes do culto, no contexto desta pesquisa possuem sem, contudo, armar que seja algo ritualístico das
demais variantes da Umbanda praticadas no interior dos municípios brasileiros.
3 Entidade Suprema equivale ao Deus do católico. Observamos aqui que no sentido da superioridade mística,
Ogún é louvado em situação posicional abaixo de Deus na primeira cantiga e de Zambi na segunda.
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Pai Jairo, saudando Oxalá, continua: “Salve Oxalá!” e os presentes respondem:
“Êpa Baba!”.
Ao ouvir a saudação me indago acerca da sequência ritual de minha prática reli-
giosa. Surge em minha frente uma “encruzilhada” por sair de uma pseudo zona
de conforto da vivência afrorreligiosa. Minha reação foi automática quando me
dou conta a cantiga já estava por terminar, de pronto, volto a acompanhar a se-
quência ritual do empreendida pelos agentes sociais, ciente de que não poderia
ultrapassar a “fronteira” do objeto de pesquisa que é a Festa em sí, no contexto
de formação da identidade afrorreligiosa. A sineta é badalada e uma cantiga é
entoada.
I
Quando Oxalá cercou sua banca.
Senhor Ogún tomou conta do Congá
Ele olha o destino pra você!
Não deixa os seus lhos sofrer!
Ele olha o destino pra você.
Não deixa os seus lhos sofrer!
Quando Oxalá cercou sua banca.
Senhor Ogún tomou conta do Congá
Quando Oxalá cercou sua banca.
Senhor Ogún tomou conta do Congá
Ele olha o destino pra você!
Ele olha o destino pra você.
Não deixa os seus lhos sofrer!
II
Pombinho branco é pombinho de Oxalá.
O pombo veio pousar nesse Congá.
O pombo veio pousar nesse Congá.
Foi no jardim das oliveiras, no jardim das oliveiras,
Que eu vi o pombinho voar.
Voou, voou, e tornou a voar.
É a mensagem divina de Oxalá.
Voou, voou, e tornou a voar.
É a mensagem divina de Oxalá.
Novamente a sineta é badalada e mais um cântico é iniciado, mas dessa vez já
com o acompanhamento do som do tambor. A Gira continua com sua alternância
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de movimentos ora no sentido de vai e vem, outrora apenas movimentavam os
ombros para direita e para esquerda. A dança assume um dos componentes reli-
giosos que propicia o transe e deste a entrega corpórea às entidades.
Pai Jairo saúda: “Salve Oxóssi!”, os demais acompanham “Òkèàró!”, ao som das
palmas, alguns Filhos de Santo, tocam o chão com a cabeça e voltam aos seus
lugares de origem.
I
Oxóssi é Oxóssi é, Oxóssi é a luz nos alumia.
Oxóssi é Oxóssi é, Oxóssi é a luz nos alumia.
Ai, ai Oxóssi, ai, ai meu pai Oxóssi.
Oxóssi é a luz nos alumia.
Ai, ai Oxóssi, ai, ai meu pai Oxóssi.
Oxóssi é a luz nos alumia.
Oxóssi é, Oxóssi é, Oxóssi é a luz nos alumia.
Oxóssi é, Oxóssi é, Oxóssi é a luz nos alumia.
Ai, ai Oxóssi, ai, ai meu pai Oxóssi.
Oxóssi é a luz nos alumia.
Ai, ai Oxóssi, ai, ai meu pai Oxóssi.
Oxóssi é a luz nos alumia.
O cântico ao Orixá caçador, aquele que fornece alimento e vive na mata, expressa
uma ritualística oro-gestual do qual o corpo é, mais uma vez, acionado.
II
Papai Oxóssi nasceu na Jurema e mamãe Oxum acabou de criar.
Papai Oxóssi nasceu na Jurema e mamãe Oxum acabou de criar.
Mas ele é o rei caçador, ele é o lho da índia, da cobra coral.
Mas ele é o rei caçador, ele é o lho da índia, da cobra coral.
Papai Oxóssi nasceu na Jurema e mamãe Oxum acabou de criar.
Papai Oxóssi nasceu na Jurema e mamãe Oxum acabou de criar.
Mas ele é o rei caçador, ele é o lho da índia, da cobra coral.
Mas ele é o rei caçador, ele é o lho da índia, da cobra coral.
O segundo cântico dedicado a Oxóssi faz referência a Jurema
4
, planta que dá ori-
4 Jurema também tem um culto especíco no Norte e no Nordeste brasileiro. É um culto com rituais próprios, e
que em partes, se aproxima da Umbanda.
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gem a uma bebida fermentada e a uma das entidades cabocla. Aqui para os Filhos
de Santo, reforça a representação da Cabocla Jurema, Mãe de coroa
5
de Mãe Lú-
cia e mentora religiosa do terreiro. Após a cantiga, o toque continua sem que haja
movimentos de transe. Por outro lado, o culto à Jurema, de tradição indígena, ca
envolvido ao culto de Pajelança
6
, distante das atuais práticas afro-brasileira das
cidades fronteiriças.
Após o badalar da sineta, escuto de fora do Terreiro à saudação “Salve Xangô!”,
clama Pai Jairo, em seguida os Filhos Respondem: “Kôkabiecile”. A reverência
agora é dedicada ao Orixá Xangô. Seus lhos se ajoelham e encostam suas testas
no chão, um gesto de respeito ao Orixá, tido como patrono da justiça. Um novo
cântico é entoado.
I
A minha canção tem um leque de pena,
Para abanar o meu tambor.
A minha canção tem um leque de pena,
Para abanar o eu tambor.
A minha canção vou entoar que eu quero ver meu pai Xangô.
E a Iansã era cheia de pena, eu quero ver meu ai Xangô.
II
Eu vi as pedras rolarem por debaixo do tambor
e de repente parou.
Meu pai Xangô disse aos seus lhos:
Guarde sempre saltitando. Salve a Xangô!
Eu vi as pedras rolarem por debaixo do tambor
e de repente parou.
Ueu, ueu, ueu. Caô!
Ueu, ueu, ueu. Caô!
Eu vi as pedras rolarem por debaixo do tambor
E derrepente parou.
5 Expressão usada no terreiro para como referência a entidade que exerce maior inuencia sobre o lho. No con-
texto masculino, a expressão usada é “Pai de Coroa”. Os termos são empregados também para os Mestres ou
Exús quando estes são a entidade principal.
6 Recomenda-se a leitura dos depoimentos do Pai Luiz Tayandô, Pai Ferenan, do Ismael Tavares, onde relatam, na
obra “cartograa social dos afrorreligiosos em Belém do Pará” suas trajetórias na Pajelança em Belém. Por meio
destes, elementos de formação da religiosidade ameríndia se mesclam ao processo que deu origem a formação
da Umbanda “amazônica”. Vide referência em Valle (2012).
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Meu pai Xangô disse aos seus lhos:
Guarde sempre saltitando. Salve a Xangô!
Ueu, ueu, ueu. Caô!
Ueu, ueu, ueu. Caô!
Os atos oro-gestuais dessa cantiga se destoa das demais. A todo refrão os dan-
çantes colocam os dedos na testa e depois erguem as mãos para o ar, do qual é
acompanhado pelo ato de erguer a cabeça.
Após aplausos, iniciam a louvação á deusa da água doce, Oxum. Dessa vez, um
Filho de Santo puxa a saudação inicial “Salve Oxum!”, em coro, ouve-se a res-
posta ao mesmo tempo em que o abatazeiro, faz rápidas batidas no tambor, “Ora
yéyé ó!”.
I
Ô mamãe Oxum olha tua casa,
são os seus lhos que moram lá.
Ela é a coroa de Oxalá.
Ela é a coroa de Iemanjá.
Ela é a coroa de Oxalá.
Ela é a coroa de Iemanjá.
Ô mamãe Oxum olha tua casa,
São os seus lhos que moram lá.
Ela é a coroa de Oxalá.
Ela é a coroa de Iemanjá.
Ela é a coroa de Oxalá.
Ela é a coroa de Iemanjá.
II
Eu vi mamãe Oxum na cachoeira.
Sentada na beira de um rio.
Eu vi mamãe Oxum na cachoeira.
Sentada na beira de um rio.
Colhendo lírio, lírio ê, colhendo lírio, lírio a.
Colhendo lírio pra enfeitar o seu congá.
Colhendo lírio, lírio ê, colhendo lírio, lírio a.
Colhendo lírio pra enfeitar o seu congá.
Termina mais uma sequência de cânticos e novamente a sineta é agitada. A partir
desse momento os Filhos de Santo formam um círculo e passam a dançar e cantar
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novamente girando em sentido anti-horário e com o acompanhamento do som do
tambor.
I
Quem era as duas ou três ventarolas,
Eram duas ou três parolas que voavam sobre o mar.
Quem era as duas ou três parolas,
Eram duas ou três parolas que voavam sobre o mar.
Uma era Iansã, Êpa Hey
E a outra era Iemanjá, Ôdo Iyá.
Uma era Iansã, Êpa Hey
E a outra era Iemanjá, ô doce Iyá.
II
Iansã tem um leque de pena para abanar o meu grande calor.
Iansã tem um leque de pena para abanar o meu grande calor.
Iansã mora nas pedreiras. Eu quero ver, meu pai Xangô!
Iansã mora nas pedreiras. Eu quero ver, meu pai Xangô!
E a Iansã era cheia de pena, eu quero ver, meu ai Xangô.
Findada as cantigas de Iansã, inicia a homenagem para Iemanjá, após a saudação
Ôdo Iyá, iniciada pelo Pai de Santo e respondida pelos Filhos, “Ôdo Iyá!”.
I
Salve a Umbanda! Salve a todos os Orixás!
Eu fui na praia para ver o balanço do mar.
Eu fui na praia para ver o balanço do mar.
Eu vi seu retrato na areia.
Ô minha linda sereia, comecei a chorar.
Eu vi seu retrato na areia.
Ô minha linda sereia, comecei a chorar.
Ô Janaína vem ver, ô Janaína vem cá!
Receber essas ores que eu vim ofertar.
Ô Janaína vem ver, ô Janaína vem cá!
Receber essas ores que eu vim ofertar.
II
Vamos saudar Iemanjá, que ela é a rainha do mar!
Vamos saudar Iemanjá, que ela é a rainha do mar!
Auê, auê, auê. Ô mamãe Tarauáca segura essa pipa que eu quero ver!
Auê, auê, auê. Ô mamãe Tarauáca segura essa pipa que eu quero ver!
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Estas cantigas marcam a expressividade Afro-brasileira dentro da Umbanda no
Terreiro da Mãe Lúcia. O repertório varia entre cinco a sete cantigas por Orixá,
sem, no entanto seguir uma sequência que para mim, seria habitual, iniciando por
Exú, Ogún, Oxóssi, Ossain, Logum, Obaluaiê até chegar a Oxalá. Neste caso,
a vivência e o conhecimento dos Sacerdotes desta casa, entoam o cântico que
conhecem.
Nas cantigas também percebemos a relação plural do ritual festivo. Desse modo,
nas músicas dedicadas a Oxalá, temos a presença de Ogún, nas de Xangô temos
Iansã, nas de Oxóssi temos a presença de Oxum.
A sequencia ritual aqui apresentada, se olharmos de maneira encadeada, temos: a
música ritual, elemento que compõe a oralidade; os gestos corpóreos - palmas e
danças que reforçam a gestualidade, somadas às roupas e as guias que compõem
o elemento visual do povo de terreiro. Tudo isto assume sentido e signicado
pela concepção religiosa do afrorreligioso em exercício, neste caso festivo, na
casa de Axé, ao qual sua identidade mítica esta por ser formada.
Que venham os caboclos: “Você que ver esta gira car boa? É só cantar e
bater palmas que a gira ca boa”
Todos dançam e giram um próximo ao outro, o espaço do Terreiro parece não
ser suciente para abrigar os dançantes e os visitantes. Ao som das palmas, os
cânticos recebem um reforço energético que envolve os presentes, passando a
participar com as palmas da mão e olhos atentos aos primeiros sintomas de tran-
se. A gira para caboclos ganha novas vibrações. Com isso se aproxima o terceiro
momento do ritual festivo, os cânticos
7
estavam levemente mais animados.
I
Eu quero ver quem vem,
Eu quero ver quem é.
Eu quero ver quem vem,
Eu quero ver quem é.
Eu quero ver caboclo bom é no balanço da maré.
Eu quero ver caboclo bom é no balanço da maré.
7 As cantigas serão apresentadas. Opto por não fazer uma analise do que cantam em virtude de manter o sentido
do que presenciei e pela natureza deste trabalho. No entanto em um trabalho futuro estas cantigas poderão fazer
parte de um estudo mais pormenorizado, sobretudo pela pouca familiaridade com a Umbanda.
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Eu quero ver quem vem,
Eu quero ver quem é.
Eu quero ver quem vem,
Eu quero ver quem é.
Eu quero ver caboclo bom é no balanço da maré.
Eu quero ver caboclo bom é no balanço da maré.
Eu quero ver quem vem,
Eu quero ver quem é.
Eu quero ver quem vem,
Eu quero ver quem é.
Eu quero ver caboclo bom é no balanço da maré.
Eu quero ver caboclo bom é no balanço da maré.
Ao iniciar a canção acima as primeiras entidades passam a vir para fazer parte
do terreiro. As entidades vêm no corpo de seus “lhos”, também chamados de
“cavalos” ou ainda “aparelho”. Este cântico faz o terreiro car mais agitado. Aos
poucos se vê os primeiros estágios de transe. Uns dão pequenos pulos, outros se
embalam de um lado pra outro, e outros tentam “prender” a vinda da entidade.
Após a incorporação as entidades passam a chamar as novas entidades para a
festa. Assim que a entidade toma posse do corpo dos Filhos de Santo dos adeptos
na roda que não estão incorporadas aos seus corpos retiram os lenços que cobrem
a cabeça das entidades para que elas dessa forma possam se rmar, enquanto
cantam:
II
Ô minha mãe Iemanjá, vem saudar guerreiro.
O pai tambor e o povo de Umbanda chegou.
Ô minha mãe Iemanjá, vem saudar guerreiro.
O pai tambor e o povo de Umbanda chegou.
E abalou, e abalou e abalou,
E abalou todo o povo de Nagô.
E abalou, e abalou e abalou,
E abalou todo o povo de Nagô.
Ô minha mãe Iemanjá, vem saudar guerreiro.
O pai tambor e o povo de Umbanda chegou.
Ô minha mãe Iemanjá, vem saudar guerreiro.
O pai tambor e o povo de Umbanda chegou.
E abalou, e abalou e abalou,
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E abalou todo o povo de Nagô.
E abalou, e abalou e abalou,
E abalou todo o povo de Nagô.
Ao entoar esta cantiga, outros Filhos de Santo entram em transe. A meta é fazer
vir Caboclo para festa, girando, dançam para celebrar a vida. As entidades pas-
sam a cumprimentarem-se umas com as outras encostando os seus ombros uns
nos dos outros e passam também a cumprimentar as pessoas que estão na roda e
em volta dela.
III
Vida de caboclo é samambaia, é samambaia é samambaia!
Vida de caboclo é samambaia, é samambaia é samambaia!
Saia caboclo, não me atrapalha,
Saia do meio da samambaia!
Saia caboclo, não me atrapalha,
Saia do meio da samambaia!
Vida de caboclo é samambaia, é samambaia é samambaia!
Vida de caboclo é samambaia, é samambaia é samambaia!
Saia caboclo não me atrapalha,
Saia do meio da samambaia!
Saia caboclo não me atrapalha,
Saia do meio da samambaia!
Eles aplaudem mais uma canção entoada. Ainda faltava Caboclo chegar. Aqueles
que já se encontrava no terreiro, ajudavam na cantoria. Outros pediam ajuda a os
presentes para ir trocar as roupas. A gira continuava em sentido anti-horário. E a
cantoria continuava:
IV
Quem tem sangue de caboclo, agora que eu quero ver.
Quem tem sangue de caboclo, agora que eu quero ver.
Saravá Ogún ia, saravá Ogún Megê.
Saravá Ogún ia, saravá Ogún Megê.
Quem tem sangue de caboclo, agora que eu quero ver.
Quem tem sangue de caboclo, agora que eu quero ver.
Saravá Ogún ia, saravá Ogún Megê.
Saravá Ogún ia, saravá Ogún Megê.
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a música no PRocesso de foRmação da identidade afRoRReligiosa em uma cidade da amazônia
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V
Se seu pai é Caboclo eu quero ver balancear.
Se seu pai é Caboclo eu quero ver balancear.
Ô balanceia Caboclo neste lugar!
Ô balanceia Caboclo neste lugar!
Se seu pai é Caboclo eu quero ver balancear.
Se seu pai é Caboclo eu quero ver balancear.
Ô balanceia Caboclo neste lugar!
Ô balanceia Caboclo neste lugar!
Ô chama todo mundo para passear.
Ô chama todo mundo para passear.
Passar, passear, passear com o balanço do mar.
Passar, passear, passear com o balanço do mar.
Ô chama todo mundo para passear.
Ô chama todo mundo para passear.
Passar, passear, passear com o balanço do mar.
Passar, passear, passear com o balanço do mar.
Ô chama Seu Marinheiro para passear.
Ô chama Seu Marinheiro para passear.
Passar, passear, passear com o balanço do mar.
Passar, passear, passear com o balanço do mar.
Ô chama seu Zé Malandro para passear.
Ô chama seu Zé Malandro para passear.
Passar, passear, passear com o balanço do mar.
Passar, passear, passear com o balanço do mar.
Ô chama seu Zé Mineiro para passear.
Ô chama seu Zé Mineiro para passear.
Passar, passear, passear com o balanço do mar.
Passar, passear, passear com o balanço do mar.
Ô chama seu Zé Pelintra para passear.
Ô chama seu Zé Pelintra para passear.
Passar, passear, passear com o balanço do mar.
Passar, passear, passear com o balanço do mar.
Ô chama seu Zé Raimundo para passear.
Ô chama seu Zé Raimundo para passear.
Passar, passear, passear com o balanço do mar.
Passar, passear, passear com o balanço do mar.
Ô chama Joana Gunça para passear.
Ô chama Joana Gunça para passear.
Passar, passear, passear com o balanço do mar.
Passar, passear, passear com o balanço do mar.
Reginaldo conceição da silVa
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A sequência ritual entoada nesta cantiga é um convite às novas incorporações.
Observamos mais eloquência nos transes daqueles médiuns que então não res-
pondia aos apelos cantados anteriormente.
VI
Entrou na mata sem pedir licença,
E a cabocla Jurema não lhe deu agô.
A mata virgem também tem seus Orixás,
Chama dona Jurema que ela é chefe de Congá!
A mata virgem também tem seus Orixás,
Chama dona Jurema que ela é chefe de Congá!
VII
Ô deixa girar, ô deixa girar, é assim que a macumba gira.
Ô deixa girar, por cima de pau e pedra.
Ô deixa girar, ô deixa girar, é assim que a macumba gira.
Ô deixa girar, por cima de pau e pedra.
Ô deixa girar, ô deixa girar, é assim que a macumba gira.
Ô deixa girar, por cima de pau e pedra.
Ô deixa girar, ô deixa girar, é assim que a macumba gira.
Ô deixa girar, por cima de pau e pedra.
VIII
Caboclo não tem caminho para caminhar.
Caboclo não tem caminho para caminhar.
Caminha por cima das folhas,
por baixo das folhas, em qualquer lugar.
Caminha por cima das folhas,
por baixo das folhas, em qualquer lugar. O quê caboclo?
IX
Caboclo não tem caminho para caminhar.
Caboclo não tem caminho para caminhar.
Caminha por cima das folhas,
por baixo das folhas, em qualquer lugar.
Caminha por cima das folhas,
por baixo das folhas, em qualquer lugar.
O quê caboclo!!!
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a música no PRocesso de foRmação da identidade afRoRReligiosa em uma cidade da amazônia
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Percebo que estas cantigas possuíam um caráter mais coletivo da Festa. Varias
Entidades já estavam devidamente paramentadas com cocá, chapéus, cuia em
mãos, algumas com os e “espada” cruzada sob o ombro.
Observo que dois jovens, apesar de tanta invocação e auxilio das entidades, ainda
não rmava o transe. Sua identidade afrorreligiosa até então não estava conclu-
ída. Faltava-lhe “ser tomado” pelas Entidades. A religião cuja manifestação me-
diúnica, por meio do transe, se faz importante, e seus protetores são incorporado
ao nome civil. É, por esta premissa, que Jairo se torna “Jairo de Oyá”, Joana se
torna “Joana de Obaluaiê” e Pedro de “Seu Pena Branca”, algo que acontece,
nesta casa, após a ocorrência do transe.
Nascimento de um Caboclo
Para os participantes da Umbanda, o momento especial é quando se comemora
o nascimento de uma nova Entidade. Os Caboclos indígenas, Erês, Exús, Ma-
rinheiros, Baianos e ou Léguas, podem ser conhecidos, porém os nomes pelos
quais estas Entidades são identicadas e cantando que se apresentam em publi-
co. Neste momento, que puxam seu ponto. Puxar o ponto signica entoar uma
cantiga e por meio desta, dizer quem é. A partir desse momento a entidade pode
fazer uso de bebidas, cigarros, usar uma espada
8
e conversar livremente com os
visitantes.
Os jovens Cristiano e “Fred” está há pouco tempo no Terreiro do qual são Filhos
de Santo de Pai Jairo. Os Caboclos já haviam incorporado faz algum tempo, mas
não falavam, não bebiam e não fumavam. Volta e meia davam fortes tapas no
chão e batiam fortemente no peito, e fazia com os dedos gesto semelhante a uma
lança, o que já indicava se tratar de um caboclo índio.
É comum entre os praticantes da Umbanda “celebrar aniversário” das Entidades
de cabeça dos Filhos de Santo. Por esta razão, o “nascimento” de um Caboclo,
bem como das demais s ser algo bom para a comunidade religiosa. Aciono Van
Gennep (2011), em “Os ritos de passagem”, quando aponta o “rito de agrega-
ção” que atende a uma sequência cerimonial (a manifestação gestual do Caboclo,
a condução ao Tambor, a condução pela Entidade “superior” e culmina com a
apresentação por meio de uma cantiga da Entidade a ser agregada à Comunidade
religiosa).
8 Pedaço de tecido retangular do qual se usa atravessando o corpo do médium quando incorporado.
Reginaldo conceição da silVa
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Neste caso, o Caboclo arma ser este Terreiro que ele escolheu para trabalhar e
contribuir no desenvolvimento da religião ao qual seu lho, também chamado de
cavalo ou aparelho, terá seu processo de formação da identidade afrorreligiosa
desenvolvido.
Figura 1. O nascimento do Caboclo Pena Verde e Urubatã das Matas.
Fonte: Pesquisa de campo no terreiro da Mãe Lúcia, Dezembro de 2014
Figura 2. A Corte para o Caboclo Pena Verde e Urubatã das Matas.
Fonte: Pesquisa de campo no terreiro da Mãe Lúcia, Dezembro de 2014
Esperado agora que os jovens Cristiano (Pena Verde), natural de Tabatinga e
João Frederico (Urubatã das Matas), natural de Bogotá na Colômbia, possam ter
condições de comprar roupas e demais adereços para seu protetor. Segundo os
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a música no PRocesso de foRmação da identidade afRoRReligiosa em uma cidade da amazônia
101
Irmãos de Santo dos jovens, ele só estava aguardando o dia que seu Caboclo se
identicasse
9
para que assim ele pudesse comprar o cocá e uma espada.
A rapidez em que esta singela cerimônia acontece faz toda magia da Umbanda.
O Terreiro, espaço expressões intertemporal, faz uma pequena pausa para ouvir
o Caboclo. Na ocasião sentir entre os presentes que aguardavam um ponto novo,
o que por si só já daria motivos de comentários e críticas, tão comuns nestes am-
bientes, mas o que se viu foi à participação na puxada do ponto e nas danças com
o “recém-nascido” Caboclo.
Ao longo de dois anos acompanhando as atividades do terreiro, apenas presen-
ciei o “nascimento” de dois caboclos, e o “aniversário” de oito, incluindo ai de
Exú. Esse fato se faz porque o Pai Jairo realiza cerca de quatro tipos de gira:
a) Gira de Desenvolvimento - é especica para os Filhos de Santo, consiste em
chamar as entidades e internamente realizam consultas e outros trabalhos;
b) Gira de Comemoração - é quando os Filhos de Santo solicitam ao Pai ou Mãe
de Santo para fazer uma festa em homenagem a um dos seus Guias, ou “Pai e
Mãe de coroa”;
c) Gira de homenagem - destinada a louvar as Entidades da Umbanda. Esta Gira
segue o “calendário” de celebração nacional dos credos de origem católica,
afro-brasileiro e indígena, por exemplo: dia dos Pretos Velhos, dia das Crian-
ças, dia de Santa Barbara dentre outros. E, por m,
d) Gira Cerimonial - são giras sem uma louvação especica, esta Gira se difere
por ser mais corriqueira, cerca de duas a três vezes ao mês, sobretudo quando
não há as outras. Por isto, é difícil ver o nascimento de uma entidade neste
tipo de Gira. Vale ressaltar que esta Gira é uma “vitrine” de atração de novos
adeptos, de novos clientes e Filhos, dada a sua constante celebração.
E os Caboclos se apresentam enquanto cantam
Nesse momento uma entidade passa a puxar o canto. Ele se autodenomina Zé de
Légua. Essa entidade dança na forma de balançar seu corpo de um lado pro outro,
além de, a todo instante, dar voltas no sentido anti-horário no salão, de volta ao
tocador do tambor, ele entoa a seguinte cantiga:
9 A partir desta situação, minha tese inicial se delineia no sentido de que a identidade afrorreligiosa, para os adep-
tos da Umbanda, começa, ao menos no aspectos cognitivo, tomar consistência ritual.
Reginaldo conceição da silVa
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I
Eu vou dizer meu nome pra por me respeitarem.
Eu vou dizer meu nome pra por me respeitarem.
Eu me chamo Zé de Légua, lho de Boji Buá.
Eu me chamo Zé de Légua, lho de Bjgi Buá.
(com a participação de todos continua-se a cantiga)
Ele vai dizer seu pra poder o respeitarem.
Ele vai dizer seu pra poder o respeitarem.
II
Fui pro baião da cidade e me convidaram pra morar.
Fui pro baião da cidade e me convidaram pra morar.
(com a participação de todos continua-se a cantiga)
Ele foi pro baião da cidade e te convidaram pra morar.
Ele foi pro baião da cidade e te convidaram pra morar.
Foi pra morar, pra morar, te convidaram pra morar.
Foi pra morar, pra morar, te convidaram pra morar.
III
Se teu pai é do Codó, ele é Codoense.
Se teu pai é do Codó, ele é Codoense.
Ô salve a or do Codó, ô salve a or codoense.
Ô salve a or do Codó, ô salve a or codoense
10
.
IV
Lá no mar tem um morro, lá no morro tem um mar.
Lá no mar tem um morro, lá no morro tem um mar.
Eu me chamo Zé de Légua, vim aqui pra saravá.
Eu me chamo Zé de Légua, vim aqui pra saravá.
Lá no mar tem um morro, lá no morro tem um mar.
Lá no mar tem um morro, lá no morro tem um mar.
Eu me chamo Zé de Légua, vim aqui pra saravá.
Eu me chamo Zé de Légua, vim aqui pra saravá.
10 Esta é uma das cantigas mais entoadas pelas Entidades “Léguas” durante as Giras. Percebe-se que esta cantiga
aciona a nostalgia destas entidades ao mesmo tempo em que suscita curiosidade dos médiuns acerca de “quem
é como é a cidade de Codó”. O mesmo vale para os demais cânticos em que a Codó, enquanto cidade encantada
é representada. Recomendo a leitura da obra: “Encantaria de Barba Soeira”: Codó, capital da magia negra?, de
autoria da pesquisadora Mundicarmo Ferretti (2001).
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a música no PRocesso de foRmação da identidade afRoRReligiosa em uma cidade da amazônia
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V
Codó, Codó, Codó, Codó. Codó lá do Maranhão.
Codó, Codó, Codó, Codó. Codó lá do Maranhão.
Ô dê um salve a essa Casa Santa
Que chegou o rei do Légua lá do Maranhão.
Ô dê um salve a essa Casa Santa
Que chegou o rei do Légua lá do Maranhão.
VI
Se meu pai é Légua, sou Légua também!
Se meu pai é Légua, sou Légua também!
E quem é lho de Légua, não tem medo de ninguém!
E quem é lho de Légua, não tem medo de ninguém!
VII
Se seu pai é do Codó ele é Codoense.
Se seu pai é do Codó ele é Codoense.
Ô salve a or do Codó, ô salve a or codoense.
Ô salve a or do Codó, ô salve a or codoense.
VII
Rei do Légua levou seu boi pra ilha do Maranhão.
Rei do Légua levou seu boi pra ilha do Maranhão.
Vai levar sua boiada lá pra mata do sertão.
Vai levar sua boiada lá pra mata do sertão.
Rei do Légua levou seu boi pra ilha do Maranhão.
Rei do Légua levou seu boi pra ilha do Maranhão.
Vai levar sua boiada lá pra mata do sertão.
Vai levar sua boiada lá pra mata do sertão.
VIII
O seu Légua tem um chicote, um chicote na sua mão.
O seu Légua tem um chicote, um chicote na sua mão.
Que é pra bater nos inimigos e deixar eles no chão.
Que é pra bater nos inimigos e deixar eles no chão.
O seu Légua tem um chicote, um chicote na sua mão.
O seu Légua tem um chicote, um chicote na sua mão.
Que é pra bater nos inimigos e deixar eles no chão.
Que é pra bater nos inimigos e deixar eles no chão.
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Seu Zé de Légua canta sua origem. Codó, terra “da magia”, localizada no Ma-
ranhão. Seu transe é anunciado por passos semelhante a passos de uma pessoa
embriagada. Assim ele também dança. Os Léguas são animados, brincalhões e ao
mesmo tempo sérios quando estão em trabalho de consulta com charutos e dando
passes em quem os procuram. Cantam também sua labuta no campo e contra mau
feitores. No Terreiro são Entidades que impõem respeito e gostam de desaar.
Desde que não falte “marafo” (aguardente) e ou cerveja tomada em copos.
No m da cantiga o Zé da Légua sai de frente do tambor, deixando-o livre para
outras entidades puxar seu ponto e assim possibilitar a uidez da festa. Aconte-
ce uma pequena pausa no terreiro e outra entidade se aproxima do tambor para
puxar outra cantiga. Agora quem puxa o ponto é a Cabocla Jacira. Ela está com
um cocá de pena na cabeça e com um vestido longo sobre seu corpo. Ela saúda
as matas, as Entidades presentes no terreiro. Ela dança e canta com muito fervor
e com a voz bem alta entoa a seguinte cantiga que depois é acompanhada pelo
batuque do Tambor:
I
Entrei na mata [coberta] com metade folha,
Saiu do remo com metade pena.
E é ela, e é ela e é ela a cabocla mais querida.
Entrei na mata com metade folha,
Saiu do remo com metade pena.
E é ela, e é ela e é ela a cabocla mais querida.
Entrei na mata [coberta] com metade folha,
Saiu do remo com metade pena.
E é ela, e é ela e é ela a cabocla mais querida.
II
Iêiêiê, iêiêiê ia.
Iêiêiê, seu Cambira pisa de vagar.
Se teu pai é caboclo, ela é lha de cabocla.
Se seu pai sabe rezar, ela também é rezadora.
Iêiêiê, iêiêiê ia.
Iêiêiê, seu Cantira pisa de vagar.
Iêiêiê, iêiêiê ia.
Iêiêiê, seu Cantira pisa de vagar.
Eu sou a cabocla Jacira, e eu vim lá da samambaia
E o feitiço que ela faz só Deus do céu desmanchará.
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III
Salve São Benedito iêiê!
Salve São Benedito iê a!
Salve São Benedito iêiê!
Salve São Benedito iê a!
Salve São Benedito iêiê!
Salve São Benedito iê a!
A sequência festivo-ritual da Gira não é algo preestabelecida. Os feitos de cada
Entidade são anunciados enquanto cantam. A festa continua pouco a pouco as en-
tidades se revezam em frente ao abatazeiro e puxam suas cantigas. Chega à vez
do seu Zé Malandro. Ele inicialmente saúda a todos do terreiro e entoa a seguinte
cantiga que logo é acompanhada por todos:
I
Eu vim, mas não sou de brincadeira,
vim aqui sacudindo a poeira.
Eu vim, mas não sou de brincadeira,
vim aqui sacudindo a poeira.
II
Iêiêiê, eu não posso te esquecer.
Zé Malandro meu amigo é você!
Iêiêiê, eu não posso te esquecer.
Zé Malandro meu amigo é você!
Iêiêiê, eu não posso te esquecer.
Zé Malandro meu amigo é você!
Iêiêiê, eu não posso te esquecer.
Zé Malandro meu amigo é você!
III
Ei seu povo a policia vem ai!
Ei seu povo a policia vem ai!
Malandro que é malandro se esconde lá na gueira!
Malandro que é malandro se esconde lá na gueira!
Olha ele aí, olha ele aí, olha ele aí!
Olha ele ai seu malandro. Olha ele aí!
Ô dona Marta não quero nada.
Entra na roda porque eu não quero nada.
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Entra na roda porque eu não quero nada.
E qualquer dia eu quebro ele, seu santo e seu caboclo,
Mas trabalhara eu não vou!
IV
Trabalhar, trabalhar. Trabalhar pra quê?
Se eu trabalhar eu vou morrer!
Trabalhar, trabalhar. Trabalhar pra quê?
Se eu trabalhar eu vou morrer!
V
Eu tava no muro como todo mundo, fumando bagulho e a polícia chegou.
Joguei o bagulho pro lado sai na fumaça e ninguém me pegou.
Houve tiroteio, houve confusão.
Mas eu não fui pra roda. Não não!
Houve tiroteio, houve confusão.
Mas eu não fui pra roda do camburão.
Percebemos que ele canta a “malandragem” carioca. Nas suas cantigas, ele aler-
ta, aconselha, remonta sua trajetória ao som do Tambor. Ele canta a boemia, a
alegria e a confusão. Galanteador, Seu Malandro passa a noite a tentar seduzir
as Caboclas e as visitantes com elogios e cantadas. É comum ele vir também nas
Giras dedicadas a Exú, trocando suas vestimentas habituais (chapéu e gorro) de
branco e vermelho para preto e vermelho.
Termina a cantiga e uma nova entidade saúda a todos. Seu nome é Zé Raimundo,
cujo mediu é um jovem militar conhecido por “Baby” Salve o tambor de hoje.
Salve! Salve o Pai de Santo. Salve! Salve seu Zé Mineiro que é o dono da casa!
Salve todos os caboclos! Salve a todos os abatazeiros! Salve eu! E salve a todos
os visitantes!
Após as saudações entoa a seguinte cantiga com o acompanhamento da comuni-
dade presente no terreiro:
I
Eu fui bolando, bolando. Foi no banzeiro do mar.
Eu fui bolando, bolando. Foi no banzeiro do mar.
Papai bebeu o ano inteiro, mamãe vai ter que me dar.
Papai bebeu o ano inteiro, mamãe vai ter que me dar. (bis 3 vezes)
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II
Eu tenho fama de ser bom cavaleiro.
De ser um homem bom de galopar.
Ele se chama Zé Raimundo, Zé Raimundo camarada.
Ele se chama Zé Raimundo. Morador da beira da água.
Ôôô Zé Raimundo chegou!
Chegou pra vir pro tambor!
Ôôô Zé Raimundo chegou!
Chegou pra vir pro tambor!
Em seguida Caboclo puxa outra cantiga que é acompanhada com o badalar do
sino e o batuque do Tambor, que assume a expressão de um instrumento sonoro
ritual, Ribeiro (1996, p.108), citando Vidossich (s.d, p.17), diz que os tambores,
[...] apresentam em suas oscilações, seu ecoar, seu rufo pene-
trante, seu retumbar dramático, uma sensibilidade e muitas suti-
lezas comparáveis às da voz humana. Considerados sagrados,
veiculam a história oralmente transmitida. Incorporam-se ao ar-
tista, e seu lugar é tão importante na mensagem que, graças às
línguas tonais, a música.
Do qual permite reviver, incorporado a vivacidade do mundo físico. Neste senti-
do, todas as demais dançam e cantam os pontos de Zé Raimundo, que continua:
III
Lá na pata do Codó, por de trás do pé de aroeira.
Lá na pata do Codó, por de trás do pé de aroeira.
Eu vim o mundo, eu vi a sombra passar,
Era eu e Zé Raimundo que acaba de chegar.
IV
Eu vim o mundo, eu vi a sombra passar,
Era eu seu Zé Raimundo que acaba de chegar.
Lá na pata do Cotó, por de trás do pé de aroeira.
Lá na pata do Cotó, por de trás do pé de aroeira.
Eu vim o mundo, eu vi a sombra passar,
Era eu seu Zé Raimundo que acaba de chegar.
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Acontece uma pequena pausa. Todas as entidades e Filhos de Santos que estão
participando da dança formam uma roda e então Zé Mineiro, caboclo que “divide
a coroa” de Mãe Lúcia com a Cabocla Jurema, entoa a sua cantiga e é acompa-
nhado pelo batuque do Tambor e por toda a comunidade presente.
I
Eu sou mineiro. Venho do Sertão de Minas.
Por de trás daquela Serra, por de trás da Rosadina.
Eu sou mineiro. Venho do Sertão de Minas.
Por de trás daquela Serra, por de trás da Rosadina.
II
Cadê minha corda de laçar meu boi?
O meu boi fugiu, eu não sei pra onde foi.
Cadê minha corda de laçar meu boi?(bis três vezes)
III
Seu boiadeiro por aqui choveu.
Seu boiadeiro por aqui choveu.
Choveu e abarrotou. (bis três vezes)
Choveu e abarrotou.
Foi tanta água que seu boi nadou.
Após breve pausa outra entidade puxa sua cantiga. Joana Gunça que está vestida
com um vestido lilás, chapéu e em sua mão direita segura um leque. Ela saúda
as pessoas presentes, pai Jairo e os caboclos presentes. Em seguinte ela entoa a
seguinte cantiga:
I
Cantiga para Joana Gunça
Eu estava em meu castelo. Pra que foram me chamar?
Eu estava em meu castelo. Pra que foram me chamar?
É ela, Joana Gunça! Foi ela, a or do mar!
II
Escrevi seu nome na areia. Senti saudades do meu Nagô.
Escrevi seu nome na areia. Senti saudades do meu Nagô. (bis duas vezes)
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III
Mas ela é uma pedrinha miudinha.
Tão pequenina nascida no pé de um dendê.
Mas ela é uma pedrinha miudinha.
Tão pequenina nascida no pé de um dendê.
IV
Vim ver o mar, vim ver o mar, vim ver o mar.
Eu sou jagunça lá nas águas do Pará.
Vim ver o mar, vim ver o mar, vim ver o mar.
Eu sou jagunça lá nas águas do Pará.
V
Pisou na areia cabocla é. Pisou na areia cabocla é.
Pisou na areia da beira mar.
Pisou na areia cabocla é. Pisou na areia cabocla é.
Pisou na areia da beira mar.
Ela termina a cantiga e dá um salve a todos as pessoas presentes no terreiro. No
m da cantiga todas as entidades se saúdam e conversam com os Filhos de Santo
presentes. Momento de descanso para o abatazeiro. Abaixo, registro diferentes
momentos da festa que formam um mosaico de situações das quais os sentidos
não dão conta em aprofundar no momento da observação.
Figura 3. Entidades (Erê, Caboclos, Légua e Zé Malandro) na Gira. Terreiro da Cabocla Jurema.
Fonte: Pesquisa de campo no terreiro da Mãe Lúcia, Dezembro de 2014
Reginaldo conceição da silVa
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Figura 4. E os Caboclos saúdam o Tambor.
Fonte: Pesquisa de campo no terreiro da Mãe Lúcia, Dezembro de 2014
Continuo a observação do cerimonial, agora atento aos diferentes transes dos
novos Filhos de Santo, em estágio de iniciação. Tempos após, a líder e mentora
do Terreiro, a Cabocla Jurema vem no templo e é aclamada pelos presentes.
Puxa seus pontos, dança e cumprimenta as demais Entidades e pessoas que lhe
aclamava.
Figura 5. Caboclo em movimento: O transe na Umbanda.
Fonte: Pesquisa de campo no terreiro da Mãe Lúcia, Dezembro de 2014
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a música no PRocesso de foRmação da identidade afRoRReligiosa em uma cidade da amazônia
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Figura 6. Cabocla Jurema puxa seu ponto.
Fonte: Pesquisa de campo no terreiro da Mãe Lúcia, Dezembro de 2014
A participação nas Giras, dentro deste contexto possibilitou compreender as co-
municações por detrás das gestualidades que, inconscientemente, os médiuns do
Terreiro da Mãe Lúcia e Filhos do Pai Jairo fazem quando estão em estágio de
transe. De mesmo modo, está compreensão foi acionada por meio de conversas
informais com os mesmos, pois os faz identicar algumas Entidades. É deste
modo que os Filhos de Santo sabem quem está por vir no Pai, na Mãe ou nos
irmãos de Axé.
Desta forma, a oro-gestualidade, articulação oral e gestual, das diversas enti-
dades quando vem nas Giras, expressam uma identidade cujo transe revela ao
menos para aqueles mais atentos, quem chegou para bailar. Confesso que não é
uma tarefa de fácil resolução em decifrar os enigmas duma complexa cerimônia
que envolve incontáveis e alguns inenarráveis saberes e praticas.
Nesse momento, ocorre a “manifestação do sagrado”, considerada por Mircea
Eliade (2011, p.17), que arma que isto é possível, pois se diferencia do profano,
de tal modo, faz parte de uma experiência religiosa que “não pertence ao nosso
mundo”, mas que pode se fazer presente aos nossos olhos durante as festas rituais
onde se faça presente o sagrado e profano, e é esse mesmo tempo-espaço festivo
das giras o que empreendi para construção do objeto de pesquisa.
Nesse sentido, sigo os caminhos de Eliade (2010, p.78), quando fala da periodi-
cidade dos tempos festivos, para ele “o homem religioso torna-se contemporâneo
dos deuses, na medida em que reatualiza o Tempo primordial no qual realizaram
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suas obras divinas (...)” neste caso o Tempos festivos “são as reatualizações peri-
ódicas dos gestos divinos, numa palavra, as festas religiosas que voltam a ensinar
aos homens a sacralidade do mundo”.
A “interface” a que me rero também é inspirada em Eliade, sobretudo, nesta
passagem:
Na festa reencontra-se plenamente a dimensão sagrada da vida,
experimenta-se a santidade da existência humana como criação
divina (...) nas festas, ao contrário, reencontra-se a dimensão
sagrada da existência, ao se aprender novamente como os deu-
ses ou os Antepassados míticos criaram o homem e lhe ensina-
ram os diversos comportamentos sociais e os trabalhos práticos.
(Eliade, 2010, p.80)
Nesta perspectiva, Di Méo (2001), citado por Araújo e Haesbaert (2007, p.72),
armam que “um dos signicados da festa está no seu poder de mobilizar ou for-
çar as identidades no nível sócio-geográco” e ainda reforçam: “seu signicado
profundo, suas manifestações, a liturgia de seu desenvolvimento, os discursos
e os mitos a mantêm trabalhando de perto ou de longe a unidade e a identidade
social”.
Acreditamos que, desse modo, as Giras da Umbanda se constituem e consolidam
processos e situações que ora armam identidades, e outrora, ainda que no mes-
mo sentido da armação, forma identidades.
Nos momentos nais da festa, após longo intervalos, em que Entidades e Filhos
de Santo descansam das danças e fazem consultas, são chamados para encerrar o
tambor. Na ocasião em que é entoada a seguinte musica:
I
Libera a linha, encoste o brinquedo.
Libera a linha, encoste o brinquedo.
Não deixa passar mais ninguém, não deixa passar mais ninguém!
Libera a linha, encoste o brinquedo.
Libera a linha, encoste o brinquedo.
Não deixa passar mais ninguém, não deixa passar mais ninguém!
(bis três vezes)
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Figura 7. Ritual de encerramento do Tambor
Fonte: Pesquisa de campo no terreiro da Mãe Lúcia, Março de 2015
À medida que esta cantiga é entoada, as batidas do tambor, acompanhadas da
oro-gestualidade, segue o ritmo de “abafamento” do som, já descrito no inicio da
minha caminhada pelos Terreiros em Tabatinga, a esta altura a sensação de dever
cumprido ca evidente entre os médiuns que logo se arrumam para sair, e assim
retornam ao mundo profano.
Considerações nais
Muitas vezes o termino do ritual festivo não representa o m da festa em si. Al-
guns momentos as entidades cam na área externa do Terreiro, “marafando” (de
marafo que signica bebida). Antes, porém, Dona Herondina entoa a seguinte
cantiga:
Um abraço dado, de bom coração, mais vale que uma bença, uma bença uma
benção. Um abraço dado, de bom coração, mais vale que uma bença, uma bença
uma benção. Um abraço dado, de bom coração, mais vale que uma bença, uma
bença uma benção.
Esta cantiga é repetida várias vezes, até que todos os Filhos de Santo se abracem,
é uma ocasião em que a hierarquia não representa status. Com a cantiga sorrisos
e uma ligeira agitação toma conta do Terreiro e a atmosfera litúrgica aproxima
visitantes, médiuns e Entidades, convidando-os a abraçar e ser abraçado, signi-
cando acolhimento fraternal entre os presentes.
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O fazer etnográco, estudando as festas da Umbanda, marca o momento em que
a musica e o longo processo de aprendizagem em situação de formação da iden-
tidade afrorreligiosa na Amazônia propicia um campo fértil para os estudos da
religiosidade desta população.
A formação da identidade afro-brasileira, neste contexto observado, reforça o
sentimento de pertencimento coletivizado pelos rituais religiosos, e em outra es-
fera, o pertencimento individual que une o umbandista aos seus Orixás e Guias
espirituais.
A identidade afrorreligiosa é vivenciada no dia a dia. O contato com o sobre-
natural está presente nas atividades corriqueiras, na musicalidade, no cuidado
com as plantas e com o objeto sacro religioso. Disto resulta no processo de au-
toarmação identitaria enquanto umbandista e pertencente a uma determinada
comunidade religiosa.
Cada um a seu modo, pode “saborear” o som do tambor, das palmas, das vozes
e do bailar das entidades enquanto esperavam seus conselhos e seus feitos má-
gico-religiosos, ávidos para levar aos seus lares, alento do corpo e da alma em
forma de cura.
Deste modo, as cantigas entoadas, são condutoras do Axé acionado no processo
de desenvolvimento da mediunidade dos lhos de Santo, na comunhão dos co-
munitários. A identidade coletiva de comunidade tradicional do terreiro, se con-
solida a medida em que, cada visitante, Filho de Santo e Guias regressam para
seus mundos, ávidos por voltar e festejar em uma nova noite de desenvolvimento
religioso.
Referencias bibliográcas
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olhares contemporâneos. Rio de Janeiro: Access.
Castro, J. (2012). Da casa á praça pública: a espetacularidade das festas juninas
no espaço urbano. Salvador: EDUFBA.
Eliade, M. (2010). Tratado da História das Religiões. Tradução: Rogério Fer-
nandes. 3ª ed. São Paulo: Editora EMF Martins Fontes.
Eliade, M. (2011). O sagrado e Profano: a essência das religiões. Tradução:
Fernando Tomás e Natalia Nunes. 4ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins
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cia, puberdade, iniciação, coroação, noivado, casamento, funerais, estações,
etc. Tradução de Mariano Ferreira. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes.
Meslin, M. (2014). Fundamentos de antropologia religiosa: a experiência huma-
na com o divino. Petrópolis, RJ: Editora Vozes.
Ribeiro, R. (1996). Alma Africana no Brasil. Os iorubás. São Paulo: Editora
Oduduwa.
Silva, R. C. (2015). “Na gira Umbanda”: Exercício etnográco sobre expressões
de afrorreligiosidade na “fronteira” e no Terreiro da Cabocla Jurema em Taba-
tinga, Amazonas. (Dissertação de Mestrado) - São Luís, MA: [s.n.].
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- religiões afro-brasileiras e ameríndias da Amazônia: armando identidades
na diversidade. Rio de Janeiro, Brasília: Casa 8, IPHAN.
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Cómo citar este artículo: Conceição da Silva, R. (2016). A música no Processo de
formação da identidade afrorreligiosa em uma cidade da Amazônia. Cuadernos de
Literatura, (23), 83-115. DOI: http://dx.doi.org/cl.23.2016.5